Marcelo, me chamam de Marcelo!
Ao acordar Marcelo viu-se em apuros, estava
extremamente atrasado o que não lhe permitiu nem o banho matinal, um homem mal
cuidado com sua barba mal feita, vestiu a primeira blusa xadrez que encontrou
no armário, escovar os dentes? Uma bala de hortelã, ele estava pronto e
correndo pelas ruas de Belo Horizonte, a capital mineira estava no ápice da
manhã, o movimento nas ruas só era interrompida aos sinais vermelhos, em meio
ao caos uma chuva forte caía sem piedade, pingos grossos que faziam com que
todos ficassem se protegendo em algum lugar. Quase todos, Marcelo não pensou
duas vezes quando atravessou a rua solitário, em menos de dois minutos estava
encharcado e com os pés fazendo um barulho estranho, dentro da botina parecia existir
um pato imaginário que martelava em sua cabeça a cada passo rápido, subiu rua,
desceu rua, correu algumas vezes, tudo isso aos olhares atentos de medrosos de
plantão. “Gente que não sabe viver” pensava ele, chegou na hora, hora certa em
que o sinal da obra ecoou forte.
-Fala Pedrão!!! – Marcelo Sorriu e nem
esperou resposta, já pegou os acessórios de segurança e vestiu-os enquanto
corria para seu posto.
O chefe como sempre passava com olhos
corriqueiros, “gordo e burro”.
-Preparado Marcelo?
-Não tenho medo de altura! – Sorriu para seu melhor amigo ali dentro, Matheus jogou-lhe o isqueiro e Marcelo acendeu o cigarro meio úmido, quando chovia tinham de ter cautela máxima, trabalhavam nas alturas e poucos, mas alguns, já morreram assim.
-Não tenho medo de altura! – Sorriu para seu melhor amigo ali dentro, Matheus jogou-lhe o isqueiro e Marcelo acendeu o cigarro meio úmido, quando chovia tinham de ter cautela máxima, trabalhavam nas alturas e poucos, mas alguns, já morreram assim.
Fumaram e subiram com ajuda da grande
máquina, usavam equipamentos pesados que os prendiam com firmeza no ar, dava
para ver todo o centro dali, “prédio de gente rica” esse era o trabalho dele. A
chuva não atrapalhava em nada, sentia o gosto de tabaco entre os dentes e ignorava
isso. Seu amigo pouco atrás assegurando que ele estava bem e ajudando,
entregando peças e cigarros com o passar das horas. Quase meio dia, nenhum sol,
muito vento, a estrutura começou a balançar muito, estava mais perigoso do que
quando chegaram, certamente teriam de dar uma pausa, a chuva não atrapalhava,
mas o vento, esse era implacável. Não demorou dois minutos e o técnico em
segurança chamou a todos com ajuda de um megafone. “Outro burro”. Marcelo se
levantou ainda preso pelos equipamentos de segurança, ouviu o barulho do pato
novamente, deu um leve sorriso e jogou o cigarro pelo ar, observou ele caindo
sem direção certa, quando percebeu ele estava caindo, escorregou rápido e
certeiro, seu coração acelerou tanto, por alguns segundos toda sua vida passou
em sua mente. Mais susto ainda foi ver que não caia mais, estava suspenso pela
corda e seu amigo gritando para que ele subisse, tentava puxar com toda força
que tinha. Marcelo voltou e agradeceu fielmente, tremia todo o corpo e não
acreditava na sorte, tinha renascido.
O dia terminou rápido junto a chuva forte, Marcelo naquele dia de
trabalho não voltou para o ar, estava muito nervoso e repetia para todos ali
perto os momentos de aflição, aumentava um pouco os detalhes, mas fazia parte
de sua natureza.
-Marcelo, reza bastante por que hoje meu
amigo, você renasceu mesmo!
-Verdade chefe, até amanhã!
-Amanhã? Amanhã é sua folga rapaz! Até depois de amanha!
-Verdade chefe, até amanhã!
-Amanhã? Amanhã é sua folga rapaz! Até depois de amanha!
Marcelo saia da sala onde todos lanchavam,
sala improvisada com madeira fraca e telhado removível, ouvia o pato de sua
bota a cada passo para fora dali, estava aéreo e nem acreditava ainda estar
vivo. Levava agora uma felicidade tão grande que não cabia no peito, ao sair
pelo portão principal tropeçou em alguém e se viu caído no chão, em cima dele
uma linda mulher que ele derrubou.
-Meu Deus! Desculpe-me!
-Oh... Minha roupa!
-Oh... Minha roupa!
Ela se levantou equilibrando-se no salto e
limpando as folhas que se prenderam na umidade do tecido, olhou para o homem
que a derrubara pensando em ficar com muita raiva dele, gravaria a imagem dele
e nunca mais trocaria uma palavra. Mas não foi isso que aconteceu.
-Tudo... Bem...
-Você se machucou?
-Não, obrigada, estou bem...
-Como se chama? – Marcelo estava vendo um anjo, por detrás dos óculos ainda sujos via um olhar tão azul que iluminava toda cidade mórbida, todas as ruas sem vida de Minas Gerais.
-Juliana, e você?
-M... Marcelo! – Ele beijou-lhe a mão como vira um filme há anos, pensou que assim a impressionaria, ela sentiu formigar pela barba mal feita e retirou a mão com o arrepio imediato que sentiu. Ele não podia perder essa oportunidade, nunca vira tão perfeita mulher, arriscou:
-Para onde vai?
-Comer algo, estou faminta!
-Posso te acompanhar? Eu pago!
-Não, obrigada, Adeus.
-Você se machucou?
-Não, obrigada, estou bem...
-Como se chama? – Marcelo estava vendo um anjo, por detrás dos óculos ainda sujos via um olhar tão azul que iluminava toda cidade mórbida, todas as ruas sem vida de Minas Gerais.
-Juliana, e você?
-M... Marcelo! – Ele beijou-lhe a mão como vira um filme há anos, pensou que assim a impressionaria, ela sentiu formigar pela barba mal feita e retirou a mão com o arrepio imediato que sentiu. Ele não podia perder essa oportunidade, nunca vira tão perfeita mulher, arriscou:
-Para onde vai?
-Comer algo, estou faminta!
-Posso te acompanhar? Eu pago!
-Não, obrigada, Adeus.
Ela não esperou reação e saiu, ele parado não
acreditava no que ouvira, como se visse um trem que acabou de sair da estação,
criou rapidamente a ilusão de que o trem poderia parar, bastasse ele ser visto.
Visto de verdade.
-Espere!
Ele correu para alcança-la, ela estava com um
sorriso disfarçado, mexia no cabelo com uma mão tão branca quanto a lua nova.
-Devo chamar a policia Marcelo?
-Não... Meu Deus... Claro que não, só estou com fome também!
-Que barulho é esse?
-É o pato! Digo... É que tem água na minha bota!
-Não... Meu Deus... Claro que não, só estou com fome também!
-Que barulho é esse?
-É o pato! Digo... É que tem água na minha bota!
Ela riu, ele ficou todo sem graça e corou, viu-se
então preso a realidade da roupa que vestia, uma blusa velha em que o vermelho
não parecia vermelho, uma calça que já desfiava na altura dos joelhos, e uma
bota barulhenta.
-Também chamo esse barulho de pato!
-Como?
-Quando estou de tênis, bom... Quando ele molha também faz esse barulho, também o comparo ao de um pato! – Olhou instintivamente, Marcelo tinha seus olhos brilhando, foi então que ela percebeu que o acolhia naquela frase, dava a ele a liberdade de não ser julgado.
-Como?
-Quando estou de tênis, bom... Quando ele molha também faz esse barulho, também o comparo ao de um pato! – Olhou instintivamente, Marcelo tinha seus olhos brilhando, foi então que ela percebeu que o acolhia naquela frase, dava a ele a liberdade de não ser julgado.
-O que você faz Marcelo?
-Trabalho na construção ali em cima!
-Ah sim...
-E você?
-Eu trabalho lá também!
-Como?
-Sou irmã do seu chefe...
-Trabalho na construção ali em cima!
-Ah sim...
-E você?
-Eu trabalho lá também!
-Como?
-Sou irmã do seu chefe...
Ela riu vergonhosa, mostrou então uma covinha
tímida enquanto as luzes dos postes iluminavam seus lindos cabelos.
-Acho que estou em apuros!
-Você que quase caiu hoje?
-Sim...
-Não precisa ficar com vergonha Marcelo, aqui, chegamos, vamos comer aqui mesmo...
-Você que quase caiu hoje?
-Sim...
-Não precisa ficar com vergonha Marcelo, aqui, chegamos, vamos comer aqui mesmo...
Era um restaurante simples, desses onde se
vende mais cerveja que comida, ela caminhou sob a supervisão dele, sentou-se
numa mesa reservada e distante. Marcelo estava diante de um sentimento que
causava medo, pânico e calafrios.
Pediram um tira-gosto, peixe com batatas,
tomaram chopp e conversaram, conversaram, conversaram sem ver a hora passar,
Marcelo ainda incomodava-se com a roupa que usava, ela estava tão bem arrumada
que parecia também não pertencer àquele lugar.
Um pouco alta, ela derrubou o copo que se
partiu em pedaços incontáveis, ele sem graça chamou o garçom e confortou-a, já
estava tarde e ele seria capaz de tudo para leva-la a sua casa, casa simples,
mas sua casa.
-Quer ir para minha casa?
Ela não respondeu, levantou-se e saiu do restaurante, ele deixou o dinheiro da
conta e foi desesperado atrás dela, mal saiu do lugar e avistou-a parada na
esquina, esperando-o com um sorriso largo.
-Vamos?
Quando ela entrou, Marcelo tentou justificar a
bagunça do quarto, ela não ligou, ignorou o que disse e tirou a roupa por
completo.
-Preciso de um banho! Vamos?
Não podia acreditar, seria um sonho? Não, não
era um sonho. Com a água quente caindo no corpo acordou para uma sensação nova,
ela tocou-se com leveza e perfeição, sem pudores, sem explicações,
entregaram-se de forma natural e completa. Por horas.
-Tenho que trabalhar amanhã! Vamos dormir,
por favor?
-Claro meu anjo...
-Claro meu anjo...
Ela virou-se e se encaixou na sua frente, os
braços largos dele apertaram-na, sua barba não incomodava mais, respiravam
fundo, misturavam na boca os sabores dos beijos, no nariz organizavam os aromas
de um doce envolvimento.
***
O despertador tocou às cinco da manhã,
Marcelo num pulo acordou sozinho.
-Droga!
Ela tinha saído sem deixar vestígios, ele mal
acreditava que trabalhavam juntos, não se lembrava dela na obra, talvez ficasse
mais nos escritórios improvisados.
Era seu dia de folga e queria vê-la, seria aceitável
ele aparecer na obra e procurar por ela? Seu coração só tinha uma resposta: Sim.
Dessa vez arrumou-se, colocou o melhor
perfume e o melhor sapato. Sem patos dessa vez, sorriu com o pensamento e
enquanto caminhava sentia por onde passava o perfume dos cabelos dela.
Esqueceu-se de todo seu passado e ansiava apenas pelo futuro.
Chegou à obra e cumprimentou novamente seu
amigo, ele estranhou Marcelo chegando para trabalhar em seu dia de folga, mas não
disse nada.
-Chefe!
-Marcelo? O que faz aqui?
-Sua irmã trabalha aqui?
-Minha irmã? O que quer com ela?
-Devo desculpas a ela...
-Por quê?
-Ontem a derrubei enquanto caminhava de tão estupido que sou...
-Marcelo? O que faz aqui?
-Sua irmã trabalha aqui?
-Minha irmã? O que quer com ela?
-Devo desculpas a ela...
-Por quê?
-Ontem a derrubei enquanto caminhava de tão estupido que sou...
Marcelo percebeu o olhar de reprovação, ele
abriu a outra porta e chamou-a, ela veio sorrindo em direção a ele.
***
Os dias se passaram lentamente, Marcelo viva
um sonho juvenil em seus 30 anos de idade.
-Eu te amo!
-Também te amo Marcelo! Mas preciso te falar uma coisa...
-O que é?
-Só me verá novamente ao dormir!
-O que?
-Também te amo Marcelo! Mas preciso te falar uma coisa...
-O que é?
-Só me verá novamente ao dormir!
-O que?
Quando disse isso ela não estava mais em seus
braços, tudo a sua volta sumiu, queria voltar, voltar ao parque municipal onde
conversavam, não era possível, estavam agora mesmo sentados num banco atrás de
grandes arvores, ouviam o barulho dos pássaros e de crianças que brincavam. Ela
sumiu.
Marcelo esfregava os olhos tentando vê-la,
mas a sua volta somente sombras. Aos poucos a claridade que o cegava
dissipou-se e ele se viu na cama de um hospital.
-CADÊ ELA? JULIANA? MEU AMOR CADÊ VOCÊ?
Gritou alto, forte, gritou muito junto a um
pranto dolorido que nascia de si.
Uma enfermeira veio correndo em sua direção,
olhava os equipamentos incrédula, chamou o medico de plantão e Marcelo ouvia os
passos aflitos, enquanto de seu peito nascia um choro descomunal.
-O que... O que aconteceu?
-Calma, Está tudo bem agora!
-Calma, Está tudo bem agora!
Logo sua mãe chegou, chorava ao vê-lo, ele
ainda não entendia nada que se passava.
-Mãe, cadê a Juliana?
-Que Juliana meu filho?
-A irmã do meu chefe mãe, a minha namorada, você a conheceu lembra? A gente almoçou na sua casa...
-Que Juliana meu filho?
-A irmã do meu chefe mãe, a minha namorada, você a conheceu lembra? A gente almoçou na sua casa...
Sua pressão começou a aumentar e sua mãe
pedia insistentemente para que se acalmasse.
-Filho, seu chefe ficou muito preocupado,
mais tarde ele vem aqui... Fique calmo.
Com os remédios Marcelo acabou adormecendo
novamente, queria acordar, mas não conseguia, não sonhou com nada e apenas
descansou.
Quando menos esperou e abriu os olhos, a sua
volta viu seus amigos.
-Fala Marcelão! Firme e forte hein!
-Cadê minha mãe?
-Ela foi descansar cara, estava exausta!
-Chefe!
-Me chame de Júlio rapaz, estamos fora da obra esqueceu?
-Júlio? Cadê a Juliana?
-Cadê minha mãe?
-Ela foi descansar cara, estava exausta!
-Chefe!
-Me chame de Júlio rapaz, estamos fora da obra esqueceu?
-Júlio? Cadê a Juliana?
Júlio arregalou os olhos, o sorriso de seu
rosto desapareceu.
-Júlio? Chefe?
Marcelo não entendia, ele sabia que
namoravam. Seus amigos apoiaram o chefe enquanto ele estava paralisado.
-Marcelo? Onde conheceu a Juliana?
-Nós namoramos, oras, esqueceu? Até agora não entendo como cheguei aqui, ela e eu estávamos no parque quando de repente tudo ficou branco e acordei aqui.
-Nós namoramos, oras, esqueceu? Até agora não entendo como cheguei aqui, ela e eu estávamos no parque quando de repente tudo ficou branco e acordei aqui.
-Marcelo, você caiu, não se lembra disso?
-Cai onde?
-Na obra, o técnico de segurança tinha mandado todos descerem por causa do vento, mas você caiu!
-Cai onde?
-Na obra, o técnico de segurança tinha mandado todos descerem por causa do vento, mas você caiu!
Palavras que entraram pelos ouvidos de
Marcelo queimando todo seu corpo. Lembrou-se do rosto angelical de Juliana e de
seus beijos intermináveis, doces como o leite adoçado, beijos acompanhados de
caricias, lembrou-se das juras de amor. Foi quando se lembrou das ultimas
palavras dela: Só me verá novamente ao dormir!
-Onde esta Juliana? Chefe?
-Ela está morta Marcelo, morreu há anos de câncer.
-Ela está morta Marcelo, morreu há anos de câncer.
Marcelo petrificou-se.
***
Os anos se passavam e Marcelo não pode
esquecê-la, em sua casa encontrou a cama desarrumada como quando deixaram na
ultima noite de amor. Não podia ser somente um sonho. O perfume dela era
encontrado nas melhores Floriculturas, sempre passeava por lá, em meio aos lírios
e aos sentimentalismos, encontrava conforto e por momentos breves sentia-se
abraçado por ela.
“Somente o vento era implacável”.
Quando o vento trazia a chuva, trazia também o
futuro, nos anos que corriam rápido Marcelo estava estático, trabalhava
pensando nela, contava a historia de seu maior romance a todos, ninguém acreditava,
ou mesmo diziam que era somente um sonho. Ou quem sabe um anjo que salvou ele.
Fato é que Marcelo viu sua mãe morrer, chorou muito, mas não por sua mãe
somente, mas por estar agora mais sozinho que nunca. Envelheceu, atrofiaram-se
as articulações, seus músculos estavam flácidos, a pela acinzentada, seus olhos
caídos e sua barba rala, branca, quase invisível.
Marcelo ainda cultivava velhas amizades, um
dia, sentado na varanda de sua casa, observando o jardim recém-cuidado,
conversava com Pedro, o bom e velho Pedrão.
-Sabia que estou feliz hoje Pedro?
-Por quê?
-Por que estou velho, em breve vou partir...
-Vira essa boca para lá Marcelo, toma uma cerveja...
-Por quê?
-Por que estou velho, em breve vou partir...
-Vira essa boca para lá Marcelo, toma uma cerveja...
Entregou-o a garrava e Marcelo aceitou, seus
olhos perdidos brilhavam nas lembranças embaçadas, mal sabia dizer a cor dos
olhos de Juliana, ou mesmo explicar sobre as conversas que já tiveram em
orações e no sonho que mais parecia realidade.
Foi assim, sentado no banco de madeira que
Marcelo viu-se se despedindo de Pedro, o jardim que observava cercava-o com
prazer, o ar que entrava pesado no velho pulmão agora, entrava revigorante.
Caminhou sem a bengala, sem dores nas pernas. Via-se novamente jovem. Ele sentou-se
no chão e para sua surpresa seus olhos foram tampados por uma mão macia e
cheirosa. Sim, era aquele o cheiro, era esse o cheiro que o vento sempre trazia
para ele. O vento era implacável e trouxe na ventania, seu grande amor.
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