quinta-feira, 15 de novembro de 2012

O Implacável


Marcelo, me chamam de Marcelo!

   Ao acordar Marcelo viu-se em apuros, estava extremamente atrasado o que não lhe permitiu nem o banho matinal, um homem mal cuidado com sua barba mal feita, vestiu a primeira blusa xadrez que encontrou no armário, escovar os dentes? Uma bala de hortelã, ele estava pronto e correndo pelas ruas de Belo Horizonte, a capital mineira estava no ápice da manhã, o movimento nas ruas só era interrompida aos sinais vermelhos, em meio ao caos uma chuva forte caía sem piedade, pingos grossos que faziam com que todos ficassem se protegendo em algum lugar. Quase todos, Marcelo não pensou duas vezes quando atravessou a rua solitário, em menos de dois minutos estava encharcado e com os pés fazendo um barulho estranho, dentro da botina parecia existir um pato imaginário que martelava em sua cabeça a cada passo rápido, subiu rua, desceu rua, correu algumas vezes, tudo isso aos olhares atentos de medrosos de plantão. “Gente que não sabe viver” pensava ele, chegou na hora, hora certa em que o sinal da obra ecoou forte.

-Fala Pedrão!!! – Marcelo Sorriu e nem esperou resposta, já pegou os acessórios de segurança e vestiu-os enquanto corria para seu posto.
O chefe como sempre passava com olhos corriqueiros, “gordo e burro”.
-Preparado Marcelo?
-Não tenho medo de altura! – Sorriu para seu melhor amigo ali dentro, Matheus jogou-lhe o isqueiro e Marcelo acendeu o cigarro meio úmido, quando chovia tinham de ter cautela máxima, trabalhavam nas alturas e poucos, mas alguns, já morreram assim.

   Fumaram e subiram com ajuda da grande máquina, usavam equipamentos pesados que os prendiam com firmeza no ar, dava para ver todo o centro dali, “prédio de gente rica” esse era o trabalho dele. A chuva não atrapalhava em nada, sentia o gosto de tabaco entre os dentes e ignorava isso. Seu amigo pouco atrás assegurando que ele estava bem e ajudando, entregando peças e cigarros com o passar das horas. Quase meio dia, nenhum sol, muito vento, a estrutura começou a balançar muito, estava mais perigoso do que quando chegaram, certamente teriam de dar uma pausa, a chuva não atrapalhava, mas o vento, esse era implacável. Não demorou dois minutos e o técnico em segurança chamou a todos com ajuda de um megafone. “Outro burro”. Marcelo se levantou ainda preso pelos equipamentos de segurança, ouviu o barulho do pato novamente, deu um leve sorriso e jogou o cigarro pelo ar, observou ele caindo sem direção certa, quando percebeu ele estava caindo, escorregou rápido e certeiro, seu coração acelerou tanto, por alguns segundos toda sua vida passou em sua mente. Mais susto ainda foi ver que não caia mais, estava suspenso pela corda e seu amigo gritando para que ele subisse, tentava puxar com toda força que tinha. Marcelo voltou e agradeceu fielmente, tremia todo o corpo e não acreditava na sorte, tinha renascido.

   O dia terminou rápido  junto a chuva forte, Marcelo naquele dia de trabalho não voltou para o ar, estava muito nervoso e repetia para todos ali perto os momentos de aflição, aumentava um pouco os detalhes, mas fazia parte de sua natureza.

-Marcelo, reza bastante por que hoje meu amigo, você renasceu mesmo!
-Verdade chefe, até amanhã!
-Amanhã? Amanhã é sua folga rapaz! Até depois de amanha!

   Marcelo saia da sala onde todos lanchavam, sala improvisada com madeira fraca e telhado removível, ouvia o pato de sua bota a cada passo para fora dali, estava aéreo e nem acreditava ainda estar vivo. Levava agora uma felicidade tão grande que não cabia no peito, ao sair pelo portão principal tropeçou em alguém e se viu caído no chão, em cima dele uma linda mulher que ele derrubou.

-Meu Deus! Desculpe-me!
-Oh... Minha roupa!
Ela se levantou equilibrando-se no salto e limpando as folhas que se prenderam na umidade do tecido, olhou para o homem que a derrubara pensando em ficar com muita raiva dele, gravaria a imagem dele e nunca mais trocaria uma palavra. Mas não foi isso que aconteceu.
-Tudo... Bem...
-Você se machucou?
-Não, obrigada, estou bem...
-Como se chama? – Marcelo estava vendo um anjo, por detrás dos óculos ainda sujos via um olhar tão azul que iluminava toda cidade mórbida, todas as ruas sem vida de Minas Gerais.
-Juliana, e você?
-M... Marcelo! – Ele beijou-lhe a mão como vira um filme há anos, pensou que assim a impressionaria, ela sentiu formigar pela barba mal feita e retirou a mão com o arrepio imediato que sentiu. Ele não podia perder essa oportunidade, nunca vira tão perfeita mulher, arriscou:
-Para onde vai?
-Comer algo, estou faminta!
-Posso te acompanhar? Eu pago!
-Não, obrigada, Adeus.

   Ela não esperou reação e saiu, ele parado não acreditava no que ouvira, como se visse um trem que acabou de sair da estação, criou rapidamente a ilusão de que o trem poderia parar, bastasse ele ser visto. Visto de verdade.

-Espere!
Ele correu para alcança-la, ela estava com um sorriso disfarçado, mexia no cabelo com uma mão tão branca quanto a lua nova.
-Devo chamar a policia Marcelo?
-Não... Meu Deus... Claro que não, só estou com fome também!
-Que barulho é esse?
-É o pato! Digo... É que tem água na minha bota!

   Ela riu, ele ficou todo sem graça e corou, viu-se então preso a realidade da roupa que vestia, uma blusa velha em que o vermelho não parecia vermelho, uma calça que já desfiava na altura dos joelhos, e uma bota barulhenta.
-Também chamo esse barulho de pato!
-Como?
-Quando estou de tênis, bom... Quando ele molha também faz esse barulho, também o comparo ao de um pato! – Olhou instintivamente, Marcelo tinha seus olhos brilhando, foi então que ela percebeu que o acolhia naquela frase, dava a ele a liberdade de não ser julgado.
-O que você faz Marcelo?
-Trabalho na construção ali em cima!
-Ah sim...
-E você?
-Eu trabalho lá também!
-Como?
-Sou irmã do seu chefe...
Ela riu vergonhosa, mostrou então uma covinha tímida enquanto as luzes dos postes iluminavam seus lindos cabelos.
-Acho que estou em apuros!
-Você que quase caiu hoje?
-Sim...
-Não precisa ficar com vergonha Marcelo, aqui, chegamos, vamos comer aqui mesmo...

   Era um restaurante simples, desses onde se vende mais cerveja que comida, ela caminhou sob a supervisão dele, sentou-se numa mesa reservada e distante. Marcelo estava diante de um sentimento que causava medo, pânico e calafrios.
Pediram um tira-gosto, peixe com batatas, tomaram chopp e conversaram, conversaram, conversaram sem ver a hora passar, Marcelo ainda incomodava-se com a roupa que usava, ela estava tão bem arrumada que parecia também não pertencer àquele lugar.
Um pouco alta, ela derrubou o copo que se partiu em pedaços incontáveis, ele sem graça chamou o garçom e confortou-a, já estava tarde e ele seria capaz de tudo para leva-la a sua casa, casa simples, mas sua casa.
-Quer ir para minha casa?

   Ela não respondeu, levantou-se e saiu do restaurante, ele deixou o dinheiro da conta e foi desesperado atrás dela, mal saiu do lugar e avistou-a parada na esquina, esperando-o com um sorriso largo.
-Vamos?

   Quando ela entrou, Marcelo tentou justificar a bagunça do quarto, ela não ligou, ignorou o que disse e tirou a roupa por completo.
-Preciso de um banho! Vamos?

   Não podia acreditar, seria um sonho? Não, não era um sonho. Com a água quente caindo no corpo acordou para uma sensação nova, ela tocou-se com leveza e perfeição, sem pudores, sem explicações, entregaram-se de forma natural e completa. Por horas.
-Tenho que trabalhar amanhã! Vamos dormir, por favor?
-Claro meu anjo...
Ela virou-se e se encaixou na sua frente, os braços largos dele apertaram-na, sua barba não incomodava mais, respiravam fundo, misturavam na boca os sabores dos beijos, no nariz organizavam os aromas de um doce envolvimento.


***

   O despertador tocou às cinco da manhã, Marcelo num pulo acordou sozinho.
-Droga!

   Ela tinha saído sem deixar vestígios, ele mal acreditava que trabalhavam juntos, não se lembrava dela na obra, talvez ficasse mais nos escritórios improvisados.
Era seu dia de folga e queria vê-la, seria aceitável ele aparecer na obra e procurar por ela? Seu coração só tinha uma resposta: Sim.

   Dessa vez arrumou-se, colocou o melhor perfume e o melhor sapato. Sem patos dessa vez, sorriu com o pensamento e enquanto caminhava sentia por onde passava o perfume dos cabelos dela. Esqueceu-se de todo seu passado e ansiava apenas pelo futuro.
Chegou à obra e cumprimentou novamente seu amigo, ele estranhou Marcelo chegando para trabalhar em seu dia de folga, mas não disse nada.

-Chefe!
-Marcelo? O que faz aqui?
-Sua irmã trabalha aqui?
-Minha irmã? O que quer com ela?
-Devo desculpas a ela...
-Por quê?
-Ontem a derrubei enquanto caminhava de tão estupido que sou...

Marcelo percebeu o olhar de reprovação, ele abriu a outra porta e chamou-a, ela veio sorrindo em direção a ele.


***

   Os dias se passaram lentamente, Marcelo viva um sonho juvenil em seus 30 anos de idade.
-Eu te amo!
-Também te amo Marcelo! Mas preciso te falar uma coisa...
-O que é?
-Só me verá novamente ao dormir!
-O que?

   Quando disse isso ela não estava mais em seus braços, tudo a sua volta sumiu, queria voltar, voltar ao parque municipal onde conversavam, não era possível, estavam agora mesmo sentados num banco atrás de grandes arvores, ouviam o barulho dos pássaros e de crianças que brincavam. Ela sumiu.
Marcelo esfregava os olhos tentando vê-la, mas a sua volta somente sombras. Aos poucos a claridade que o cegava dissipou-se e ele se viu na cama de um hospital.

-CADÊ ELA? JULIANA? MEU AMOR CADÊ VOCÊ?

Gritou alto, forte, gritou muito junto a um pranto dolorido que nascia de si.

   Uma enfermeira veio correndo em sua direção, olhava os equipamentos incrédula, chamou o medico de plantão e Marcelo ouvia os passos aflitos, enquanto de seu peito nascia um choro descomunal.

-O que... O que aconteceu?
-Calma, Está tudo bem agora!
Logo sua mãe chegou, chorava ao vê-lo, ele ainda não entendia nada que se passava.
-Mãe, cadê a Juliana?
-Que Juliana meu filho?
-A irmã do meu chefe mãe, a minha namorada, você a conheceu lembra? A gente almoçou na sua casa...
Sua pressão começou a aumentar e sua mãe pedia insistentemente para que se acalmasse.
-Filho, seu chefe ficou muito preocupado, mais tarde ele vem aqui... Fique calmo.

   Com os remédios Marcelo acabou adormecendo novamente, queria acordar, mas não conseguia, não sonhou com nada e apenas descansou.

Quando menos esperou e abriu os olhos, a sua volta viu seus amigos.
-Fala Marcelão! Firme e forte hein!
-Cadê minha mãe?
-Ela foi descansar cara, estava exausta!
-Chefe!
-Me chame de Júlio rapaz, estamos fora da obra esqueceu?
-Júlio? Cadê a Juliana?
Júlio arregalou os olhos, o sorriso de seu rosto desapareceu.
-Júlio? Chefe?

   Marcelo não entendia, ele sabia que namoravam. Seus amigos apoiaram o chefe enquanto ele estava paralisado.
-Marcelo? Onde conheceu a Juliana?
-Nós namoramos, oras, esqueceu? Até agora não entendo como cheguei aqui, ela e eu estávamos no parque quando de repente tudo ficou branco e acordei aqui.
-Marcelo, você caiu, não se lembra disso?
-Cai onde?
-Na obra, o técnico de segurança tinha mandado todos descerem por causa do vento, mas você caiu!

   Palavras que entraram pelos ouvidos de Marcelo queimando todo seu corpo. Lembrou-se do rosto angelical de Juliana e de seus beijos intermináveis, doces como o leite adoçado, beijos acompanhados de caricias, lembrou-se das juras de amor. Foi quando se lembrou das ultimas palavras dela: Só me verá novamente ao dormir!

-Onde esta Juliana? Chefe?
-Ela está morta Marcelo, morreu há anos de câncer.
Marcelo petrificou-se.



***


   Os anos se passavam e Marcelo não pode esquecê-la, em sua casa encontrou a cama desarrumada como quando deixaram na ultima noite de amor. Não podia ser somente um sonho. O perfume dela era encontrado nas melhores Floriculturas, sempre passeava por lá, em meio aos lírios e aos sentimentalismos, encontrava conforto e por momentos breves sentia-se abraçado por ela.

“Somente o vento era implacável”.

   Quando o vento trazia a chuva, trazia também o futuro, nos anos que corriam rápido Marcelo estava estático, trabalhava pensando nela, contava a historia de seu maior romance a todos, ninguém acreditava, ou mesmo diziam que era somente um sonho. Ou quem sabe um anjo que salvou ele. Fato é que Marcelo viu sua mãe morrer, chorou muito, mas não por sua mãe somente, mas por estar agora mais sozinho que nunca. Envelheceu, atrofiaram-se as articulações, seus músculos estavam flácidos, a pela acinzentada, seus olhos caídos e sua barba rala, branca, quase invisível.

Marcelo ainda cultivava velhas amizades, um dia, sentado na varanda de sua casa, observando o jardim recém-cuidado, conversava com Pedro, o bom e velho Pedrão.

-Sabia que estou feliz hoje Pedro?
-Por quê?
-Por que estou velho, em breve vou partir...
-Vira essa boca para lá Marcelo, toma uma cerveja...

   Entregou-o a garrava e Marcelo aceitou, seus olhos perdidos brilhavam nas lembranças embaçadas, mal sabia dizer a cor dos olhos de Juliana, ou mesmo explicar sobre as conversas que já tiveram em orações e no sonho que mais parecia realidade.

   Foi assim, sentado no banco de madeira que Marcelo viu-se se despedindo de Pedro, o jardim que observava cercava-o com prazer, o ar que entrava pesado no velho pulmão agora, entrava revigorante. Caminhou sem a bengala, sem dores nas pernas. Via-se novamente jovem. Ele sentou-se no chão e para sua surpresa seus olhos foram tampados por uma mão macia e cheirosa. Sim, era aquele o cheiro, era esse o cheiro que o vento sempre trazia para ele. O vento era implacável e trouxe na ventania, seu grande amor.

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